Amassando o pão e construindo a organização: das oficinas técnicas a uma proposta de solidariedade | Parte 1

35 dias. Manhãs e tardes. Caminhadas e correrias. Tropeços e discussões. Mas o sorriso das ruas, quando a organização popular prevalece, é a vitória deles e delas. É a nossa vitória também

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Por André de Souza Fedel e Luis Alves Pequeno, Educadores Populares
Fotos: Luis Alves Pequeno

Este relato tem como foco os cursos de Panificação básica e Confeitaria realizados no âmbito do projeto CooperaRua, executado pelo Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo – Cefuria, tendo como público principal 11 pessoas que estiveram em situação de rua, em Curitiba, agora acolhidas em equipamentos públicos e/ou conveniados com a prefeitura.

Simultaneamente, cursos de cosméticos naturais e acessórios étnicos de uso pessoal foram desenvolvidos com outros participantes em situação de rua, ao longo de novembro e dezembro de 2016. Estes, farão parte de outro relato de Educação Popular, dialogante com o atual. Aos 3 grupos* coube o mesmo objetivo: aproximar pessoas em vulnerabilidade social, a vivências práticas em economia solidária, gerando renda a partir de trabalhos coletivos e autogestionários. Outra intenção foi despertar e fortalecer a possível criação de Grupos de Trabalhos autogestionários ou a inclusão de seus membros em algum dos empreendimentos econômico solidários já existentes.

O relato abaixo será dividido em 3 partes. Panificação; Confeitaria; Conquistas e Futuro.

Os Cursos de Panificação Básica e Confeitaria ocorreram na Padaria Comunitária “O Pão Nosso”, na Vila Fanny, região sul de Curitiba, entre os dias 10 de novembro e 15 de dezembro de 2016, dia dedicado à Economia Solidária.

A assessoria se deu por duas integrantes da rede de padarias comunitárias Fermento na Massa, Nair de Queiroz Cunha e Rosângela Schiocchet; duas profissionais do campo da identidade visual, Helena Cantão(estudante de design e membro da Incubadora Tecsol/UTFPR) e Tatiane Dedini(Design Gráfica); da gestão e ecosol, Fabiane Bogdanovicz(psicóloga) e Dayana Lilian Rosa Miranda(consultora em planejamento). Finalizando o corpo técnico de envolvidos, o coletivo teve acompanhamento dos educadores no Cefuria, Luis Pequeno e André de Souza Fedel.

Os processos pedagógicos, além das oficinas técnicas específicas, compreenderam noções de Economia Solidária(ecosol); noções de gestão de Empreendimentos Solidários; Criação de Identidade Visual; Intercâmbio com redes de economia solidária; Confecção de Planos de Sustentabilidade, entre outras.

Os cursos foram resultado do intenso processo de construção, debate e práticas de educação popular entre o povo de rua, assessoras(es), militantes do MNPR e os educadores(as) do CEFURIA**.

A arquidiocese Anglicana do Paraná, localizada em uma das ruas onde mais encontra-se pessoas em situação de rua, foi palco e também protagonista de muitas ações que culminaram ao início deste processo das oficinas. Elas, as oficinas, tiveram como objetivo uma enorme vontade de vincular a rede de economia solidária com a população em situação de rua.

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Em um dia destes de novembro de 2016, pôde-se ter um primeiro vislumbre de como seria este processo. Havia muitas pessoas interessadas na proposta das oficinas, pois como já havia sido divulgado, seriam oficinas de panificação, de cosméticos naturais e de artesanatos étnicos.

Neste dia, que foi de grande importância para orientar o proceder desta caminhada rápida, imediata e prática, ou seja, um proceder com o perfil do povo de rua, percebeu-se algumas coisas.

A primeira que destacamos foi no início quando um dos educadores perguntou: “O que vocês pretendem com a oficina de panificação”? De ‘bate-pronto’ algumas das pessoas na roda responderam: “Arrumar um emprego”; “ter meu próprio dinheiro”; “Alugar uma casa”. Rapidamente também, outro educador perguntou: “Quem aqui esteve presente nas rodas de conversa e no Curso de Agentes de Desenvolvimento Local? Alguém lembra o que conversamos sobre as diferenças entre Trabalho e Emprego”?

Neste momento uma das assessoras relembrou alguns presentes que as oficinas não dariam emprego a ninguém e mais, quem veio com essa intenção iria ‘cair do cavalo’.

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E é isso. As oficinas, e neste caso da panificação, não são vinculadas a nenhum sistema de educação profissionalizante, e por isso não objetivam a inserção no mercado de trabalho formal que conhecemos. O famoso emprego, para a Economia Solidária, é algo difícil, contraditório e desafiador, uma vez que ele é ditado, regulado e organizado por normas socialmente aceitas e leis burocraticamente legitimadas, que pouco, ou nada condizem com o cotidiano, com os sujeitos e as organizações da Economia Solidária. Grande parte da população que vive desigualdades sociais, em territórios marcados pela segregação ou buscando maneiras de sobreviver, consegue imaginar somente este caminho para superar as dificuldades econômicas.

Outra percepção no decorrer das inscrições foi deparar com homens e mulheres, jovens e adultos, que estavam vivendo suas vidas nas ruas e estavam ali, ansiosos em ter informações de como e onde seria o início das oficinas de panificação. E nós já tínhamos informado dias antes que as oficinas teriam primeiramente o objetivo de apoiar pessoas que estão sendo acolhidas, que estão inseridas na rede de serviços e políticas públicas do município, contribuindo com mais uma política pública, a da economia solidária, a do trabalho. O que e como fazer?  Todas(os) possuem o direito de estar inclusos em momentos como este, mas antes é necessário uma pessoa que encontra-se em situação de rua ser apoiada e procurar apoio para que sua condição imediatamente mude. Todas pessoas necessitam ter acesso a uma moradia. Não é verdade? Todas pessoas necessitam ter acesso a educação de qualidade. Não é verdade?

Passado o primeiro momento das inscrições, nos deparamos que seriam em torno de 25 ou 20 pessoas. Mesmo sabendo que a padaria comunitária da Vila Fanny suportaria no máximo 16 pessoas, pois entendemos que a atividade formativa e a vivência seria extremamente importante com um número relevante de pessoas, e foi o que o a oficina inicial e as inscrições demonstraram.

Ledo engano novamente.

A vivência com a povo de rua é marcada por uma inconstância a todo o tempo e isso se dá por inúmeros motivos. Não seremos nós e nem queremos dizer se isso é correto ou errado. No início da oficina de panificação básica, estávamos em 17 pessoas, entre as oficineiras, educadores, assessoras e os educandos. No primeiro dia, dialogamos a possibilidade de desenvolver os produtos em uma lógica sem exploração – através da Economia Solidária – ; aprendemos receitas, ganhamos dicas para ajudar na fabricação dos produtos, e estabelecemos algumas regras para limpeza e uso coletivo dos equipamentos.  Ao longo da primeira semana conseguimos constituir uma ideia de cada um que estava ali, de onde vinha, qual a sua trajetória de vida, qual a sua “treta”, qual o seu vício, o que fazia para sobreviver. Claro, com todo o respeito possível. A permanência na padaria comunitária da “O Pão Nosso” não era somente um terreno de trabalho e aprendizagem técnica, mas muito mais que isso, chão propício para imaginar e experimentar processos de organização e vivenciar um aprendizado totalmente diferente.

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Ao mesmo tempo que era perceptível a atenção dos educandos nas orientações das oficineiras no processo de produção dos pães e derivados, as conversas que aconteciam neste entremeio – sobre os cotidianos de quem já morou na rua, sobre estar sofrendo um grande preconceito em um acolhimento público por sua opção sexual ou religiosa, ou até mesmo as falas de persistência de logo fazer mudanças radicais na vida -, eram também atentamente ouvidas e refletidas por todos ali presentes.

A contribuição de integrantes de diferentes padarias comunitárias de Curitiba mostram como a Economia Solidária é possível e reforçam o quanto é importante trocar experiências entre diferentes grupos.

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Talvez a maior contribuição que conseguimos oportunizar é a potência de todas(os) os educandos terem total entendimento que eles estavam durante todas as oficinas por eles mesmos. Como diria alguns “É nóis por nóis!”. Tamanha foi a sensação, e poder, de serem os próprios protagonistas de suas histórias que, em um dos momentos de discussão sobre ‘o que fazer’ daqui para frente, com os primeiros rendimentos das produções, um dos educadores provocou a discussão em grupo sobre montar um caixa coletivo e experimentar formas coletivas de administração e uso dos rendimentos. Neste momento olhares cruzaram entre todas(os) e dois educandos aceitaram a proposta, ao passo que na sequência, outro educando firmemente opinou:

“Olha, como esta oficina é para todos nós, eu acho que a opinião sobre formar um coletivo agora ou depois é somente nossa. Eu por exemplo, sei que estou aprendendo muito aqui e quero fazer algo logo depois das oficinas, mas não sei se todos querem algo coletivo.

Essa fala deixou todos(as) preocupados pois introduziu realmente o questionamento sobre o futuro desta caminhada das oficinas. As oficineiras em outro momento começaram a pensar consigo e nas reuniões das redes de padarias comunitárias discutiram de que maneira poderiam contribuir, pois algumas padarias existem pela persistência de poucas mulheres e a vinda de trabalhadores dispostos a contribuir seria um alento a sua realidade. Em outros momentos percebeu-se também a discussão sobre quais seriam as pessoas dispostas a organizarem  um coletivo de panificação. A questão pairou no ar e a oficina de confeitaria, que seria um aprofundamento nas práticas de panificação, deu início com algumas táticas e estratégias que construímos ao longo do tempo para apontar caminhos diante desta e de outras situações.

Em breve divulgaremos as outras duas partes desse Relato de Educação Popular. 

* Os grupos participam dos cursos previstos no Projeto CooperaRua, fruto do convênio 811901/2014 celebrado entre Cefuria e Secretaria Nacional de Economia Solidária (MTE).

**No segundo semestre de 2015 foi realizado o Curso de Agentes de Desenvolvimento Local, onde muitas realidades cotidianas que envolvem o povo de rua foram discutidas e problematizadas por um grupo, desencadeando na organização de uma rede de apoio.
No primeiro semestre de 2016 foi realizado o primeiro Seminário “População em Situação de Rua e Economia Solidária” onde construiu-se um espaço de convergência de experiências no campo da Educação popular e Economia Solidária com iniciativas de Porto Alegre e Belo Horizonte. 

Um comentário sobre “Amassando o pão e construindo a organização: das oficinas técnicas a uma proposta de solidariedade | Parte 1

  1. Puxa que iniciativa legal …enquanto tanta gente reclama de tudo, tnta gente trabalha para incluir o próximo !

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