Políticas públicas para população em situação de rua: limites e possibilidades

Relato da nona etapa do Curso de Formação de Agentes de Desenvolvimento Local, do projeto Coopera Rua. Nessa etapa os participantes ajudaram a pensar as formas de acesso e a falta de políticas públicas para a população em situação de rua.111111111111
Por Ana Luiza Cordeiro
Supervisão Franciele Petry Schramm

“Se essa rua, se essa rua fosse minha.” O que teríamos entre as esquinas, nos bairros e micro regiões? Se a rua fosse, de fato, nossa, qual a distribuição e a localização das moradias, acessos e rotas de transporte público?

A nona etapa do Curso de Agentes de Desenvolvimento Local, promovida pelo Projeto Coopera Rua, iniciou trazendo uma atividade mais tátil aos participantes. Fazendo analogia à estruturação das ruas e do mapeamento urbano, os participantes foram separados em grupos que, por objetivo, deveriam se dirigir até a sala de debates. Tarefa que é bastante complicada quando não se conhece as ruas, os obstáculos, o caminho – dificuldades que foram representadas pelos olhos vendados dos participantes, junto de agentes intuídos a confundir a rota dos participantes. As pessoas comentaram o que mais os atrapalhou. “Interferências externas. Integrantes do grupo titubeando o tempo todo. Lideranças sem saber para onde ir. Integrantes do grupo se dispersaram. A pessoa que estava nos conduzindo não estava atento ao grupo” aponta um dos participantes.

1111“A organização não foi coletiva”, destacou outra participante. “Alguém chegou, nos mandou fazer fila, disse para onde tínhamos que ir, e todo mundo obedeceu”. Ao caminhar de olhos vendados e guiados por outros integrantes, sem saber ao certo para onde iam, os grupos sentiram com mais intensidade a necessidade de se repensar a quem atende a configuração urbana.

“Na cidade alguém manda e alguém obedece”, destaca Kauê Avanzi, geógrafo que ajudou a facilitar a atividade. “As pessoas foram consultadas se um trajeto de ônibus é melhor para elas? De que maneira a política pública de transporte, nesse caso, interfere na forma em como a gente vive a cidade?”, questiona.

Os espaços urbanos são carregados de representações e reflexos sociais, mas nem sempre a estruturação política e cartográfica reflete as necessidades da população, respeitando sua construção histórica e condição de produto social. Pensando nisso, os participantes foram instigados a refletir e debater sobre a distribuição das cidades.

Imagens que traziam representações de rotas, estradas, categorização climática, e até uma construção coletiva de determinada região a partir da visão dos moradores. Todos esses exemplos foram trazidos para o debate e tinham uma coisa em comum: eram mapas. Em seus mais diversos aspectos, representações, conteúdo e modo de informar, os mapas evidenciaram que as diferentes formas de apresentar como se compõe o cenário urbano.

22222222222222“Os mapas institucionais não representam a realidade da comunidade”, aponta um dos participantes. O debate suscita uma análise da relação entre o mapeamento urbano e o poder público, onde a rotina e a vida são afetadas e estipuladas, muitas vezes, pela estruturação cartográfica.

O que, então, os mapas institucionais representam? “O fato de não estar no mapa é uma sensação excludente”, aponta um dos participantes. Essa percepção é trazida também no vídeo Todo mapa tem discurso, que suscita a discussão dos vazios cartográficos. Sentir-se incluído e participativo socialmente requer perceber-se representado e assistido por políticas públicas. Ser institucionalmente visto significa mais do que se reconhecer nas representações das cidades. Significa ter direitos seus direitos assistidos e respeitados, significa participar e existir dentro como ser social.

22222222222Canetas e figurinhas se espalharam pelo chão, e aos poucos os mapas foram se delineando. Divididos em três grupos, os integrantes tornaram-se mapeadores. Numa construção conjunta, partindo de um esboço da região central de Curitiba, foram apontadas as políticas públicas existentes e ainda necessárias para a população em situação de rua, a partir da visão de cada participante.

Assim as demandas foram surgindo e sendo localizadas, apontadas e estruturadas, partindo principalmente do olhar dessa população. “Depois de construir mapas com ausências e presenças em comum, passei a tentar identificar o que existe de locais de ações para Pessoas em situação de rua que podem começar a crescer para ser uma rede, onde um pode socorrer o outro. As poucas políticas que temos hoje são recentes e fruto de muita luta dos movimentos”, aponta Vanda de Assis, educadora popular do Cefuria.

Em cada apresentação dos mapas finalizados, via-se a compreensão de perceber as necessidades de forma coletiva. “Precisamos ganhar força para mostrar o que foi feito e o que será feito para a sociedade. Para mostrar o que é o trabalho do movimento, para romper o olhar do preconceito”, aponta uma das participantes, que está em situação de rua.

>> Confira aqui um dos mapas produzidos pelos participantes

Não é favor, é direito

Assistência social, saúde e segurança pública. Ações que, por direito, deveriam assistir à população e assegurar uma vivência integra, mas são bastante ausentes na visão dos participantes. Os mapas repletos de marcações deixam claro que a estruturação urbana não tem como prioridade atender à sociedade. As necessidades se estendem desde banheiros públicos, restaurantes populares, até regionais especializadas em mulheres em situação de rua, necessidade de escolas e centros de atendimento de saúde, como apontado pelos grupos. “Não é favor, é direito”, indica uma das educadoras populares do Cefuria.

“Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento”
(Cálice – Caetano Veloso, 1973)

Como na letra entoada por Chico Buarque, o silêncio é pesado, e se evidencia nas falas presentes no debate. Mais do que não se identificar cartograficamente, a população tem seus direitos e necessidades silenciadas pelo sistema.

2222Do olhar do homem em situação de rua, sai a constatação de que as ineficiências da política pública são influenciadas por fatores territoriais e econômicos. “No Batel (bairro de classe alta de Curitiba), a polícia não bate em quem bebe”, lembra quem já apanhou muito da Guarda Municipal, nas praças centrais da cidade.

Dar espaço a quem aqui habita, ocupa e compõe os espaços urbanos, lançar olhares sob as demandas sociais e lutar pela visibilidade de quem tem voz, mas é constantemente silenciado, compreender como a construção das políticas públicas, ou a falta delas, se efetiva na rotina das pessoas, e, também, se perceber parte dos mapas foram saberes tecidos ao longo do debate que ainda deixa espaço para a vontade de levar adiante a formação e novas visões perante as necessidades de quem compõe as ruas. “A gente tá falando de rede. Não pode acabar o curso e fica por aqui. A rede começa agora”, diz um dos participantes.

Materiais utilizados nessa etapa

Vídeo| Todo mapa tem discurso

Veja o relato de etapas anteriores do Curso de Formação de Agentes de Desenvolvimento Local e Economia Solidária:

>> 1ª Etapa: Trajetórias de Vida: reconhecendo diferenças e entrelaçando semelhanças
>> 2ª Etapa: Educação popular: trocando saberes, construindo sabedoria
>> 3ª Etapa: Modos de produção e trabalho: o ser humano enquanto sujeito
>> 4ª Etapa: O trabalhador no capitalismo: entre circuitos de exploração e subordinação
>> 5ª e 6ª Etapa: Economia Popular Solidária e a construção de um mundo novo
>> 7ª Etapa: Organização popular: conquista e luta por direitos
>> 8ª Etapa: Raça e Gênero: o preconceito enquanto construção social

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