Em nome dos megaeventos, leis e direitos ficam no banco de reserva

Por Ednubia Ghisi

Na noite de quinta-feira, 7, o 2º (De)bate-bola trouxe percepções e fomentou a discussão sobre o outro lado da Copa de 2014: quais as consequências das grandes obras para as cidades-sedes? Que direitos ficam em segundo plano em nome da competição? Quais interesses estão por trás dos megaeventos? Estas e outras questões foram tratadas pela professora da Universidade Federal Fluminense e integrante da Rede de Megaeventos Esportivos – REME, Fernanda Sánchez, pelo integrante do Observatório das Metrópoles e do IPPUR – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Luiz César de Queiroz Ribeiro, e pela advogada do Centro de Referência do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos – IDDHEA, integrante do Observatório de Políticas Públicas do Paraná, Juliana Cabral.

Mais de 100 pessoas participaram do encontro realizado na Reitoria da UFPR, entre elas representantes de movimentos sociais, organizações de direitos humanos, pesquisadores e estudantes. O (De)bate-bola é organizado pelo Observatório de Políticas Públicas do Paraná e nesta edição teve apoio do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPR e do Observatório das Metrópoles/INCT/CNPQ.

O tema que esteve no ponto alto do debate foi a relativização das normas e direitos nos preparativos e durante os megaeventos. Para as debatedoras Fernanda Sánchez e Juliana Cabral, a organização de megaeventos amplia situações de estado de exceção, onde normas são flexibilizadas e direitos são negados em nome da realização de grandes obras de infraestrura, da aquisição de altas quantias de recursos financeiros e mudanças na estrutura urbana. A agilidade necessária para dar conta das demandas e prazos exigidos por organismos internacionais como a FIFA leva parcela das tarefas do poder público para as mãos do capital privado – e o interesse coletivo fica no meio do caminho, escancarando a desigualdade na distribuição de oportunidades e benefícios no processo. “Tudo se torna válido porque os projetos têm um horizonte temporal de rapidez. Nesse contexto, o estado de exceção passa ser quase regra, quase uma técnica de governo”, afirma Fernanda.

Das competições esportivas voltadas ao lazer, Luiz César de Queiroz Ribeiro avalia que os megaeventos têm se configurado em atividades econômicas de entretenimento, organizadas em um circuito mundial e baseadas principalmente no turismo: “Os megaeventos são atividades criadas para circulação de capital. São criados novos territórios de investimentos e novas fronteiras para a expansão do capital. A cidade acaba sendo apropriada como uma máquina de investimento”. Segundo o pesquisador, esse processo teve início entre os anos 70 e 80, como consequência da própria crise do sistema capitalista.

O jogo já começou

Três anos antes da Copa de 2014, a capital paranaense e outras cidades brasileiras já vivem a supressão de leis e a violação de direitos humanos. Juliana aponta como um exemplo de lei de exceção o convênio firmado entre o governo estadual, a prefeitura de Curitiba e o Clube Atlético Paranaense, que possibilitou a liberação de 90 milhões de reais em Potencial Construtivo para o Clube. “Os termos do convênio são extremamente confusos, complexos e ilegais”, afirma Juliana, baseada em análises feitas por especialistas do Observatório. Trata-se, conforme se evidenciou durante os debates, de toda uma engenharia jurídica para tentar legitimar o que é, em essência, transferência de patrimônio público para atividades particulares.

Também a priorização das obras de interesses pontuais e as tentativas de maquiar e embelezar as cidades leva o direito à moradia a ser um dos mais violado em megaeventos. De acordo com levantamento elaborado pelo Observatório de Políticas Públicas do Paraná, cerca de 320 famílias estão ameaçadas de despejo devido às obras de ampliação do Aeroporto Internacional Afonso Pena, em São José dos Pinhais/PR, ainda que com cronograma de execução atrasado. A previsão de gastos com as desapropriações é de 80 milhões de reais, porém o governo estadual diz poder destinar apenas 10 milhões para este fim. No bairro Xaxim, em Curitiba, cerca de 500 moradias deverão ser removidas para dar lugar a obras ainda não divulgadas, o que se repete na região do Sabará, Cidade Industrial de Curitiba, a pretexto de “revitalizar” rios e áreas verdes.

Em Fortaleza, casas estão sendo marcadas para demolição, sem qualquer aviso anterior, para dar lugar à instalação de um trem de alta velocidade. Novas obras para receber as Olimpíadas de 2016 são motivos de ameaças de despejo na Vila Autódromo e de outras comunidades no Rio de Janeiro. E a história se repete em Belo Horizonte e Porto Alegre, por conta de obras para a Copa.

Dados referentes a megaeventos já realizados em outros países demonstram a repetição do problema vivido no Brasil: em Seul, nas Olimpíadas de 1988, 15% da população urbana foi expulsa e 48 mil edifícios foram demolidos. Mil famílias foram desalojadas em Nova Deli, na Índia, em decorrência dos Jogos da Commonwealth. A Copa do Mundo da África do Sul resultou na remoção de 20 mil famílias para regiões empobrecidas da cidade e na segregação forçada da população em situação de rua.

É preciso agitar as bandeiras

“Não se pode falar mal da Copa, ou você se torna inimigo nacional”. A afirmação da advogada Juliana Cabral sintetiza a dificuldade em fazer críticas à realização da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Apesar disso, o debate em torno do mito da copa têm avançado diversas cidades brasileiras, somando na organização e mobilização contra os resultados negativos trazidos pelos megaeventos.

Em março desse ano, lideranças populares, militantes, movimentos sociais e pesquisadores se reuniram no Rio de Janeiro na Plenária sobre os Megaeventos Esportivos, onde foram discutidos os impactos sociais, financeiros, ambientais, culturais e estratégias de ação para as 12 cidades atingidas. A Conferência Internacional Megaeventos e a Cidade, realizada em novembro de 2010, também possibilitou o diálogo entre atores sociais brasileiros e de outros países em torno dos impactos.

“A sociedade civil não fica passiva e tem realizado pressão”, garante Fernanda Sánchez, que cita os Comitês Populares, realizada durante o Pan do Rio de Janeiro e rearticulados pela sociedade civil em inúmeras cidades-sede da Copa do Mundo. Apesar de enfrentar grandes projetos do poder público em parceria com o capital, a resistência da população resultou em conquistas significativas. Para a pesquisadora, as situações vivenciadas pelas comunidades atingidas pelos megaeventos são oportunidades para a ampliação do debate e a desnaturalização de verdades disseminadas na sociedade. Como experiências de organização popular a serem multiplicadas, essas iniciativas devem ser reproduzidas também em Curitiba, conforme anunciado no evento.

Diante do cenário de suspensão de direitos e utilização das cidades em nome de interesses privados, o professor da UFRJ propõe a mobilização em torno de outro projeto de sociedade: “Nós estamos vivendo uma nova mercantilização das cidades brasileiras e precisamos ter um projeto em oposição ao que está aí. Precisamos debater mais intensamente a reforma urbana”.

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