Campo e cidade trocam saberes durante visita ao Assentamento Contestado

Entre os passos calmos e as mãos agitadas, Rosa Teixeira relembra os dias longos que começavam cedo. “Às 7 da manhã tinha que pular da cama, tirar guarda também, que é ficar de vigia. As mulheres de dia e os homens à noite”. Há 14 anos ela caminha pela estrada de chão batido, e o timbre satisfeito entrega que as lutas valeram a pena.

Texto e fotos: Ana Luiza Cordeiro (estagiária)
Edição e supervisão: Ednubia Ghisi (jornalista)

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No dia 21 de novembro cerca de 70 pessoas representantes de grupos populares, padarias comunitárias, clube de trocas e movimentos sociais de Curitiba e região metropolitana se reuniram no Assentamento da Lapa com aproximadamente outros 200 integrantes das áreas de produção e agricultura do Assentamento do Contestado, concebendo um Intercâmbio campo-cidade. O encontro proporcionou debates voltados à produção orgânica, agroecologia, além de fortalecer a relação entre famílias assentadas e as organizações urbanas.

O Assentamento produz alimentos e faz troca com as padarias comunitárias, com foco na saúde, pela demanda da produção sem agrotóxicos. Maçã, pêssego, pode ter verdura junto. Mais do que comida, é alimento pedagógico. Se configura no envio e redistribuição do alimento mais natural do campo para as áreas urbanas.

Dona Rosa mostra, orgulhosa, sua produção. Fala com encanto do que hoje é fruto de sua dedicação. Mas não apenas alimento do corpo físico. Rosa traduz em palavras sua vivência e rotina na produção orgânica “Ele dá uma qualidade de vida melhor. Quando as pessoas têm consciência da alimentação saudável, elas começam a lutar para que o governo incentive, amplie esses programas”.

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Miguel Arcanjo, do MPM – Movimento Popular por Moradia, conta animado sobre sua participação na construção de novas relações alimentares e sociais. “No CIC, temos 1500 famílias acampadas. São três ocupações: a Nova Primavera, a 29 de Março e a mais recente é a Tiradentes, que tem 800 famílias. Agora que eles tão começando a conhecer esse produto aqui… seria bom pra esse intercâmbio, pois eles consomem e incentivam o consumo desse produto mais saudável. Quem vai chegando nas ocupações não conhece, tem que trabalhar junto. Aqui é a ocupação no campo e lá é a ocupação na cidade”.

A importância da troca de conhecimento e experiência não está apenas na fala articulada, ou na compreensão da necessidade de se fortalecer o câmbio entre campo e área urbana, bem como a corrente de produção e consumo de orgânicos. Está, também, nos gestos tênues de José Lourenço, que produz hortaliças e fala com timbre ameno, afável sobre sua rotina de cuidados com a produção.

Os grupos, que cedo saíram rumo às casas familiares para presenciar a produção e a rotina, agora retornam ao centro do Assentamento. Passos calmos de quem agora carrega um pouco mais de história em cada bolso.

Um espaço aberto, amplo e marcado pela luta de famílias. O espaço do Assentamento do Contestado abriga, hoje, 108 famílias, e incontáveis experiências e vivências. E é entre as árvores e as sombras que a tarde se inicia, e com ela o ritmo de um ato político.

A sala repleta de rostos atentos, misturados à decoração que rememora a lutas e IMG_0162persistência de movimentos sociais, ecoa uma força intrínseca. Curitiba estava presente representando 51 entidades que fazem trabalhos com famílias na esfera de segurança alimentar, com crianças, idosos e casa de recuperação; Também famílias que fazem parte de sete grupos do Assentamento do Contestado; comunidades da lapa representando oito grupos. Representantes também de três grupos do município de São Mateus.

Um encontro das famílias que produzem com as que consomem os alimentos. Agricultores e grupos, mais entidades e órgãos do governo: MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário, MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Banco do Brasil, representante da senadora Gleisi Hoffmann, Conselho municipal de Segurança Alimentar, Conabi – Companhia Nacional de Abastecimento, INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Prefeito da Lapa, Prefeito de São Mateus do Sul, UEPG – Universidade Estadual Ponta Grossa. Conselho Nacional de Segurança Alimentar, representante da Campanha Permanente contra Agrotóxicos e pela Vida.

Poesia, música e discurso. Tudo entrelaçado construindo a força das falas. E as vozes tomaram espaço, ganharam força, virou um ato político. Reivindicando, debatendo, abrindo espaços para falas e pluralidades. Dando voz para que a sala se ocupasse daquelas mulheres e homens cientes de suas realidades e esforços. De suas vidas e sua construção de um futuro cada vez mais pautado nos princípios de segurança alimentar, questões ambientais, cuidados da mata, dos animais, da água e da vida.

E falas expressivas e sagazes produziram naquele espaço. Em meio a bandeiras e cartazes, as vozes arquitetam e contextualizam uma trajetória que faz referência a cada vida ali presente, junto da celebração do projeto, da militância social e a preocupação com a justiça para manter a construção de esferas de ajuda, democratização das propriedades de terra, além da ampliação e politização da consciência social.

Há cinco anos o Cefuria, o MST, a Conab, em parceria com Cecopan iniciaram a possibilidade da Rede Alimentar, através do Programa de Aquisição Alimentar – PAA. Alimentos vindos da agricultura familiar são adquiridos pelo governo federal e redistribuídos através de instituições de assistência social e nutricional, restaurantes populares, cozinhas comunitárias e escolas, visando pessoas em vulnerabilidade social e alimentar Inicialmente, as cooperativas entregavam os alimentos, mas não apenas: também formação e consciência alimentar através da ação. Surgindo, então, o Conselho Gestor para fazer a parceria e manter a relação entre campo-cidade se fortalecer. E ir além da alimentação, onde em média 300 pessoas atuam nessa rede colaborativa de entrega de alimentos. A experiência, o afeto e a dedicação se refletem em cada etapa, cada entrega.

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Tudo permeando uma esfera que engloba alimentação, produção e renda, sustentabilidade, inovação. Conceitos que compõe a Agroecologia, prática que atrela técnicas de cultivo ao respeito às terras e ao meio ambiente, visando minimizar o impacto da agricultura industrial na biodiversidade. Ainda que bastante recente, a Agroecologia pode ser compreendida como uma concepção social, econômica e política que permeia a atuação das famílias integrantes do MST.

As falas políticas, ainda que voltadas a temáticas específicas, eram todas carregadas de uma ideologia agregadora, apaixonada, de luta. As falas fortes foram de incentivo, de vislumbre. Em cada representante a comoção do que já foi conquistado se mistura ao ensejo do que ainda há de se conquistar, da luta que já começou mas não pode – e não há de – parar.

Houve, também, a conquista do Certificado da Agroindústria para os grupos Recanto Feliz, Santos Reis, Quero Quero, Povoado, Esperança, Estiva e Caracol, que traz junto com a legitimação da produção orgânica o mérito da luta social.

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Do lado de dentro, no salão, mais de uma centena de pessoas compartilhando a sonoridade da esperança, da vontade e cooperatividade. Do lado de fora, o sol e o vento traçaram um dia agradável. Alguém falou que nunca viu um clima tão gostoso na reunião. Talvez fosse sobre o clima, mas talvez fosse a atmosfera como um todo. O tempo cooperou nesse ambiente que, veja a coincidência, é um convite aos bons efeitos da colaboratividade.
E se as crianças que corriam no amplo espaço puderem absorver um pouco do sentimento que rege o movimento, teremos um caminhar bem mais digno, mais humano, mais doce. E que entre seus risos singelos, floresça a força das palavras das mulheres e homens que se pronunciaram e lutaram para que esse espaço seja possível e real.

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